Unicórnios ou mulas sem cabeças: que tipo de economia nós teremos?
As políticas expansionistas em períodos de fortes contrações na economia sempre foram o calcanhar de Aquiles dos economistas. Diante de opiniões controversas, há mais do que dois lados desta moeda. De interpretações antagônicas, caminhamos para fatos evidentes: qual será o impacto futuro das medidas que estamos tomando hoje?
Antes da crise do COVID-19, o mundo já vinha com um forte demonstrativo de alta liquidez. Com baixas taxas de juros ao redor do mundo — em alguns países com juros negativos, como o caso do Japão, ou muito próximas a zero, como nos EUA — , as classes de ativos com maiores exposições ao risco se tornaram destaque nas carteiras dos investidores mais arrojados — experientes ou novatos. Em 2019, a Bolsa de Valores do Brasil, medida pelo IBOVESPA, principal índice da B3, atingiu os impressionantes 100 mil pontos, pavimentando uma nova trajetória no mercado de capitais brasileiro. Dois anos depois, já em pandemia, atingiu-se mais de 3,5 milhões de investidores pessoas físicas [1], numa clara expressão da adoção de novas práticas na vida financeira do brasileiro. Ainda que o número expresse menos de 2% da população total, representa uma maior exposição a ativos que vão além da poupança — prática que também nunca foi muito usual na vida do brasileiro médio.
No ano passado, auge da pandemia e com níveis de incertezas maiores em relação a vacinação e a retomada da economia, os investimentos em Venture Capital (VCs) e Private Equity (PE), somaram R$ 23,6 bilhões. Mesmo o valor sendo 7 pontos percentuais menor sobre o valor observado em 2019, foi considerado o segundo maior volume de capital de risco desde 2011 e pela primeira vez, os aportes de VCs superaram os de PE no Brasil [2]. Nos três primeiros meses de 2021, com uma melhora nas perspectivas devido ao nível de vacinação global, o investimento em Venture Capital chegou em seu patamar recorde. De acordo com a plataforma Crunchbase, o investimento global em capital de risco atingiu US$ 125 bilhões durante este período, uma alta de 50% sobre o quarto trimestre de 2020, e um salto de 94% em relação ao primeiro trimestre de 2020 [3].
Os chamados unicórnios, empresas que alcançaram um valor de 1 bilhão de dólares, foram responsáveis por US$ 57,9 bilhões desse valor captado [2]. Em um movimento que expressa também a maior atratividade de ativos de alto risco está o interesse de family offices no investimento em startups. Segundo uma pesquisa da Astella Investimentos, quase metade das 46 multi e single-family offices ouvidas, pretendem aumentar sua exposição à venture capital nos próximos 12 meses. Entre os que já investem em VC, 60% têm menos de 5% da carteira em fundos do tipo ou investimentos diretos em startups [4]. Nos EUA, a exposição média é de 10%, segundo levantamento do Silicon Valley Bank [5]. Gigantes como Uber, Facebook e WeWork, possuem, também, em suas bases de investidores, aportes de family offices. Também é natural deste mercado, depois de percorrerem todo o trajeto comum de investimentos, ou boa parte dele, as empresas deste segmento realizarem ofertas públicas para captação de mais dinheiro. Nem sempre as coisas caminham como o planejado.
Foi o que ocorreu com a WeWork, empresa que oferece espaços compartilhados para startups e com a empresa britânica de delivery, a Deliveroo. Em outubro de 2019, o fundador da WeWork, Adam Neumann, tentou levar sua empresa para a Bolsa de Valores de Nova York. Tendo como investidor o grande fundo japonês, Softbank, ao ser revelado os números financeiros para investidores em potencial, a startup acabou entrando em descrédito: os documentos apresentados indicavam prejuízos; um modelo de negócio que não havia sido provado e uma má governança corporativa . Com o IPO adiado, a avaliação da empresa pelo mercado caiu de US$ 104 bilhões em julho de 2019 para US$ 10 bilhões em outubro do mesmo ano. Após o ocorrido, o fundo japonês voltou à cena e anunciou ter feito um acordo para assumir o controle da startup [6], [7].
Em março deste ano, a empresa britânica, Deliveroo, anunciou seu IPO na bolsa de Londres. Em uma avaliação de abertura de aproximadamente US$ 10,5 bilhões, a empresa também apresentou prejuízos em seu histórico financeiro, mesmo após observar o crescimento de sua demanda no decorrer da pandemia [8]. No início da pandemia, a companhia chegou a receber investimentos da Amazon para não ir à falência. Durante 2020, no entanto, o faturamento da companhia foi de aproximadamente US$ 1,7 bilhão, apesar do bom resultado, a Deliveroo fechou o ano no vermelho, com perdas de aproximadamente US$ 310 milhões [9], [10]. As duas empresas citadas são duas, dentre diversas outras, que compõem essa classe de ativos de alto risco. Sem lucros, elas operam sob um arcabouço de capitalistas de riscos que aportam seus capitais na esperança de que no futuro a tão esperada lucratividade apareça. Há também empresas brasileiras que atuam na mesma direção. Em 2020, o Nubank, que em março deste ano divulgou que chegou a 33 milhões de clientes, registrou prejuízo líquido de R$ 230 milhões [11]. Em 2019, o rombo foi de R$ 312 milhões [12]. Nos dois momentos, o diretor financeiro da fintech explicou que o prejuízo era uma decisão estratégica e que a qualquer momento o negócio poderia apresentar resultados financeiros positivos, caso optassem.
Na Europa, o cenário com inchados valuations também somam um longo histórico. O mercado de open banking, dominado por empresas como Tink, TrueLayer e Plaid, recentemente foi surpreendido por uma rodada de investimento que avaliou a empresa TrueLayer em aproximadamente £250–300 milhões, enquanto suas receitas estão abaixo de £5 milhões, sendo assim, um múltiplo de receita de 60 vezes. Enquanto isso, a última rodada da empresa Plaid, que também oferece tecnologia para o open banking, custou cerca de 59x suas receitas [13]. Em entrevista para o portal Sifted, o fundador da fintech, Yapily, também europeia, disse que
“os investidores não estão olhando para multiplicadores de receita, mas para o tamanho do mercado. […] Há uma oportunidade de construir uma empresa de US$ 100 bilhões.”.
Apesar dos chamativos — e algumas vezes assustadores — números nas avaliações de empresas do segmento de tecnologia, cabe lembrar que se o unicórnio, com seu chifre comprido e único, representa a pureza e a força, a mula sem cabeça representa a maldição. Sendo o mercado uma constante dança das cadeiras pelo risco com melhores retornos financeiros, aquele que se garante apenas no pessimismo não costuma aproveitar — ainda que acerte o diagnóstico, relógio quebrado acerta a hora duas vezes ao dia. No entanto, ainda assim, a pergunta que deveríamos começar a refletir é: quando a temporada de caça se acalmar, o verão terminar e o céu começar a se fechar, que tipo de economia nós teremos?
Referências bibliográficas:
[4] https://braziljournal.com/astella-family-offices-querem-mais-vc-e-acoes-no-portfolio
[5] https://www.svb.com/blogs/barry-obrien/the-rise-of-the-family-office
[6] https://news.crunchbase.com/news/from-hot-to-not-a-timeline-of-weworks-ipo-implosion/
[7] https://distrito.me/we-work-ipo-historia/
[9] https://www.reuters.com/article/us-deliveroo-ipo-preview-idUSKBN2BM0GE
[13] https://sifted.eu/articles/open-banking-valuations/